A inflação vai dobrar o Cabo da Boa Esperança
Preparem-se para a tormenta – cinco séculos depois de Vasco da Gama nos trazer especiarias e riqueza pelo Cabo da Boa Esperança, o caminho do navegador volta a ser a principal rota de comércio entre o Oriente e a Europa, trazendo-nos um pouco de tudo…. a preços mais altos
Em meados de outubro do ano passado, depois de um período já complexo de pandemia e guerra na Ucrânia, eis que irrompe mais um conflito bélico, desta vez protagonizado por Israel e pelo Hamas, no enclave palestiniano da Faixa de Gaza. Pouco tempo depois, fruto deste conflito, as milícias Hutis do Iémen iniciam os ataques no mar Vermelho tendo como alvo os navios mercantes de origem ocidental e israelita. Para um observador mais distraído este evento pode parecer somente mais uma metástase de uma disputa histórica que gera fortes simpatias transfronteiriças na região do médio oriente, mas a realidade é que é da maior relevância internacional, como já veremos.
Sendo atualmente a China, e os seus países vizinhos, a grande fábrica do mundo, uma grande maioria dos produtos acabados, peças intermédias e até mesmo matérias-primas provêm desta zona do globo, via transporte marítimo. No caso europeu, a rota usada atravessa precisamente o canal do Suez, cruzado diariamente por 56 navios, em média.
Visando estes navios, os ataques no mar Vermelho geraram o caos na principal rota marítima Oriente-Europa, reduzindo em 50% o tráfego pelo canal, à medida que muitas companhias marítimas optaram por suspender o transporte por este trajeto e procurar alternativas necessariamente mais longas, mais demoradas e, inevitavelmente, mais onerosas. Assim, não é de estranhar a rapidez com que vários países deslocaram meios militares para a região e atacaram posições Hutis, assim como o aviso da China ao Irão.
Efeito Cascata
O impacto na economia e no comércio mundial da suspensão do comércio marítimo proveniente do Oriente via Canal do Suez será tão mais elevado quanto maior a insegurança e mais tempo ela persistir. Mas o que se pode esperar é escassez e o encarecimento do preço das matérias-primas, o que provocará um efeito “cascata” que tende a alargar à generalidade dos produtos transportados por via marítima.
Nos anos da pandemia, o transporte marítimo também sofreu grandes perturbações. Impossibilitados de atracar os navios permaneciam fundeados ao largo, congelando assim toda a cadeia logística mundial. O preço dos fretes marítimos disparou mais de 700%![1] Seguiu-se, como seria de esperar, um rápido aumento da inflação.
Na presente situação, os navios são obrigados a navegar o caminho descoberto por Vasco da Gama, contornando o Cabo da Boa Esperança. Quinhentos anos depois esta volta a ser a principal rota comercial entre o Oriente e a Europa. O problema é que, romantismos à parte, o trajeto é 40% mais longo, o que aumenta o tempo de frete e os custos de combustível, diminuindo paralelamente a disponibilidade de navios.
Desta vez os custos do transporte ainda “só” dispararam 300%. Mas não há grandes razões para otimismo.
Quando analisamos as curvas de inflação da União Europeia e os custos de contentores Shanghai-Roterdão, verificamos que as duas estão razoavelmente correlacionadas, com seis meses de atraso. Vejamos: o custo dos contentores inicia a subida em julho 2020 e a inflação dispara na UE, seis meses depois. O pico do custo dos contentores dá-se em janeiro de 2022 e o da inflação em julho do mesmo ano. E assim sucessivamente.
É fácil perceber o fenómeno recorrendo a um exemplo prático. Em outubro de 2023 um contentor com 5000 unidades de um produto de custo unitário de 10USD, tinha um custo do frete de 2000USD[1] e o custo final do produto seria de 10.4USD. Já em janeiro deste ano, com o transporte do mesmo contentor a 6000USD, o mesmo produto chegaria à Europa a custar 11.2USD, ou seja, 8% mais caro.
Por isso, preparem-se: a inflação vai voltar a subir. Só precisa dobrar o Cabo da Boa Esperança para começar a desembarcar na Europa. Ou será que é o Cabo das Tormentas?
Miguel Allen Lima
ARQUILED CEO
[1] Trading Economics e Eurostat:
https://tradingeconomics.com/european-union/inflation-rate#:~:text=Inflation%20Rate%20in%20European%20Union,source%3A%20EUROSTAT